22 de jul. de 2014

Destilação: A arte de "extrair virtudes"

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      Alambiques, retortas e fornos estão sempre presentes em imagens para caracterizar alquimistas e químicos em seus laboratórios. Isso indica que tais instrumentos, utilizados no processo de destilação, têm papel destacado no imaginário relativo tanto à alquimia quanto à química. Essa ideia não deixa de ter fundamento, pois a destilação há muito tempo vem sendo utilizada tanto nas artes que envolvem o tratamento e a transformação de materiais quanto por estudiosos que buscavam afirmar ou elaborar ideias sobre a composição da matéria.
    Hoje em dia, a destilação, processo baseado nas diferenças entre os pontos de ebulição das substâncias, é adequadamente explicada pela ideia de que a matéria é formada por partículas que se movimentam e interagem. O fracionamento do petróleo, a obtenção de álcoois e a extração de essências são apenas alguns exemplos de processos em que a destilação é empregada na indústria. Além disso, a destilação é um dos principais métodos de purificação de substâncias utilizados em laboratório. Assim, a importância desse processo tão bem conhecido e claramente interpretado por meio de modelos sobre as partículas que constituem a matéria justifica sua inclusão em qualquer curso de química de nível médio.
     Entretanto, nem sempre a destilação foi considerada uma operação tão trivial. Desde suas origens e durante um longo período, a destilação estaria ligada à preparação de poderosas ‘águas’ e à obtenção da ‘pedra filosofal’, do maravilhoso ‘elixir’ que promoveria a cura de todas as doenças dos metais e dos homens.
     Seria também por meio da destilação que os iniciados extrairiam as ‘quintessências’ de vegetais, minerais e partes de animais, obtendo-se dessa forma puríssimos e poderosos medicamentos.

Possíveis origens da arte da destilação

    Pode-se considerar que a destilação foi um dos desenvolvimentos promovidos pelos alquimistas alexandrinos nas técnicas de se operar sobre a matéria. Tal consideração baseia-se nos estudos realizados sobre os textos produzidos na Antiguidade que chegaram até os dias de hoje. Conforme tais estudos, termos como ambix, lopas ou cucurbita e mesmo desenhos de alambiques estariam presentes apenas nos escritos dos alquimistas alexandrinos. De fato, nas principais fontes dos textos alquímicos alexandrinos que sobreviveram até nossos dias em cópias manuscritas feitas entre os séculos XI e XV, estão algumas figuras de instrumentos que os químicos de hoje podem facilmente associar com aparatos destilatórios.
     Entretanto, apesar das semelhanças observadas entre essas figuras e os instrumentos atualmente utilizados, o processo de destilação era realizado naquela época num contexto muito diferente do atual. A destilação era uma operação alquímica, relacionada, portanto a um corpo conceitual originário de hibridizações entre ideias mágicas, religiosas e filosóficas, associadas aos conhecimentos envolvidos nas práticas artesanais egípcias.
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     No laboratório, o alquimista procurava operar sobre a matéria de modo a aperfeiçoá-la, imitando o que se acreditava ocorrer na natureza. Admitia-se que os metais seriam originados no interior da terra e se aperfeiçoariam por um processo análogo à gestação. Assim, a transmutação que ocorreria naturalmente, mas num tempo muito longo, poderia ser acelerada pelas operações alquímicas. Dessa forma, admitia-se que os conhecimentos alquímicos permitiam ao adepto controlar as forças naturais. Por isso, esses poderosos conhecimentos eram considerados divinos e sagrados, devendo, portanto ser mantidos em segredo. Além disso, referências a um momento de revelação em que o adepto recebia esses conhecimentos podem ser notadas em muitos dos textos alquímicos.
     Concepções filosóficas sobre a composição e as transformações da matéria também faziam parte dos fundamentos da alquimia. A possibilidade de transmutar um metal em outro podia ser justificada com base na ideia aristotélica de que a matéria fosse um ‘substrato amorfo’ impregnado de qualidades. Assim, adequando-se as qualidades do metal de partida, seria possível obter prata ou ouro. Uma forma de se fazer isso seria através da eliminação das qualidades do metal comum para se obter aquele ‘substrato amorfo’, aquela matéria primordial sobre a qual seriam então impressas as qualidades da prata ou do ouro. Para realizar as operações necessárias, o alquimista contava com um grande acervo de conhecimentos técnicos que tiveram sua origem nas práticas artesanais egípcias, mas aos quais somaram-se os métodos desenvolvidos pelos próprios alquimistas, nos quais utilizavam poderosas ‘águas’ e ‘espíritos’.
     O processo de destilação provavelmente foi concebido nesse contexto. A invenção dessa técnica e dos instrumentos nela envolvidos é atribuída à alquimista Maria Judia, que teria vivido no início da era cristã. Entretanto, deve-se ressaltar que o termo destilação seria empregado só muito tempo depois para identificar exclusivamente esse processo específico. Mesmo no início da idade moderna, o termo destilar abrangia todos os processos em que se observava gotejamento, incluindo, portanto, fusões e mesmo filtrações.
     Os aparatos destilatórios atribuídos a Maria Judia seriam naquela época empregados, por exemplo, na obtenção de ‘águas sulfurosas’. Entre as ‘águas’ — termo durante muito tempo empregado com referência a líquidos — destacava-se uma ‘Água Divina’, provavelmente uma solução de polissulfetos que seria empregada no processo de imprimir as propriedades do ouro, tais como a cor amarelada, ao material em transmutação. Também na separação de ‘espíritos’ a partir de diferentes materiais, a destilação passaria a ser vista como processo fundamental. Nota-se que aí já pode ser percebida a origem da ideia da possibilidade de se preparar um agente capaz de transmutar qualquer metal em ouro, que viria a ser chamado ‘pedra filosofal’, ‘tintura’ ou ‘elixir’ e cuja busca viria a caracterizar a alquimia em todo o seu desenvolvimento.
     Os livros de destilação A arte da destilação viria a ser amplamente difundida pela nova arte da imprensa. Em tratados de mineração e metalurgia, tais como Pirotechnia (1540), escrito por Vanoccio Biringuccio e De re metallica (1556), de Georgius Agricola, encontram-se descrições de instrumentos e métodos para se obter as “águas de partir” utilizadas por metalurgistas e ourives. Mas seria especialmente nos chamados ‘livros de destilação’ — nos quais, além de se descrever instrumentos e fornos destilatórios, se discorria sobre as virtudes das plantas, minerais e partes de animais considerados curativos — que as vantagens da arte da destilação viriam a ser enaltecidas.
     Um dos mais difundidos livros de destilação foi o Liber de arte distillandi..., Escrito por Hieronymus Brunschwig, cirurgião de Estrasburgo, e publicado pela primeira vez em 1500.
     Brunschwig considerava que remédios obtidos por destilação seriam mais eficientes que as decocções tradicionalmente empregadas. De acordo com ele, nos medicamentos destilados estaria a parte mais pura do material de partida, já que a destilação seria...

‘Simplesmente separar o impuro a partir do sutil e o sutil a partir do impuro, cada qual separadamente do outro, com o propósito de poder tornar o corruptível incorruptível, e de fazer o material imaterial, e de que  o espírito vivo seja feito mais vivaz, pois, pela virtude da grande bondade e da força que nele é  mergulhada e escondida, ele deve penetrar rapidamente, para concepção de sua saudável  operação no corpo do homem’.

    Embora o Liber de arte distillandi... Possa ser considerado como um “manual técnico”, a concepção sobre destilação expressa no trecho citado está relacionada com a ideia da extração das virtudes do material, de sua pura quintessência. Uma outra evidência da presença de concepções alquímicas nos livros de destilação é obtida quando se consideram as semelhanças entre a descrição das virtudes da aqua vitae por descrições das propriedades do ‘elixir’ apresentadas em textos alquímicos. Assim, por mais ‘técnicos’ que esses livros de destilação possam parecer aos nossos olhos, as concepções que tinham por traz de si estavam ligadas à ideia alquímica da extração das virtudes dos materiais, da separação de ‘espíritos’ a partir de materiais impuros, e das ideias sobre o ‘elixir’.


Fonte:  BELETRAN, M. H. R. Química Nova na Escola. N. 4, novembro, 1996, p.24

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